Nasceu, mas passa bem

Durval Oliveira Jr.
2 min readOct 1, 2020

A moradora do prédio aqui do lado voltou da maternidade com todos os apetrechos verdes claros necessários para o momento. Sacolas, toalhas e panos variados, tudo novinho em folha. E ainda trouxe um bebê de brinde, novinho em folha também.

Desceu do táxi com aquele sorriso de missão cumprida, mostrando que acabara de inaugurar a fábrica de afeto. O marido, agora pai, deixou cair a manta do rebento no asfalto, se atrapalhou tirando o celular do bolso e quase esqueceu a sogra dentro do carro.

É estranho como a noção de tempo ficou confusa em tempos de pandemia. Na sexta a moça estava grávida e na quinta já me volta com uma criança pronta. Ou será que foi em uma sexta meses atrás? Não importa. A criança é linda, como todas as outras desde 1980. Felipe.

Chegou no meio de uma pandemia. No meio do caos. Felipinho, aos 30 dias de setembro do ano da graça de nosso senhor Jesus Cristo 2020, chegou para trazer esperança aos pais.

Corta para o pai passando com uma barrica de álcool em gel porque, segundo ele, “esse vírus tá foda. Com criança pequena em casa agora tem que tomar cuidado.” A mãe odeia o atual governo e o pai usa óculos escuros na foto de perfil. O negacionista agora acredita na pandemia porque chegou a vez de ser no dele e refresco no dos outros.

O porteiro não consegue falar o nome correto e toda hora pergunta pelo Henrique.

A senhorinha que vende Minas Cap disse que ele tem que tomar chá de picão.

— Daqui a uns dias vou levar ele pra brincar lá na roça — diz o porteiro. — Não é, Henrique? Gracinha.

A mãe atravessou a rua por volta das 17h30 e foi acender um cigarro em frente uma obra, sob uma árvore, escondida, foragida. Cada trago era um desabafo. Daqueles que a mulher cansada coloca a mão nas cadeiras enquanto puxa a fumaça.

Felipinho devia estar dormindo sob os cuidados da avó. O pai implicava com um morador de rua. As pessoas morriam em algum lugar, em vários lugares, o caos prosseguia.

Ela apagou o cigarro e falou um “puta que pariu” baixinho antes de voltar pra casa. Não acho que estava pensando no preço do velotrol.

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Durval Oliveira Jr.
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Written by Durval Oliveira Jr.

Escritor que não escreve, jornalista sem formação, astuto debatedor de botequim.